O Ponto de Mutação – uma análise sob a ótica da complexidade e do ambientalismo

Como parte das atividades da disciplina de Meio Ambiente e Interdisciplinaridade do programa de Doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente, fomos convidados a assistir o filme O Ponto de Mutação, de Fritjot Capra, sob a ótica dos temas trabalhados na disciplina.

Bem, com o intuito de manter um registro aqui sobre como o filme aborda a questão da complexidade, teoria dos sistemas e temas ligados ao ambientalismo, e compartilhá-lo com quem interessar, deixo a seguir uma breve análise sobre as partes que me chamaram a atenção…


O filme menciona que a humanidade e o planeta são um só, uma só consciência. Isso remete à hipótese de Gaia, na qual toda a biosfera e seus elementos físicos (mesmo os “não vivos”) fazem parte de um complexo sistema interagente – um “grande organismo vivo”. Essa ideia é reforçada pela primeira frase apresentada: “As pedras falam, eu estou calado”.

O ponto de mutação, mencionado no filme, refere-se a uma mudança de comportamento, uma tomada de consciência da humanidade quanto ao seu papel enquanto espécie na manutenção da vida no planeta Terra.

O filme retrata o encontro de três pessoas: um político, um poeta e uma cientista. Inicia com algumas reflexões, comparando o estilo de vida humano no passado (período medieval e posterior) e no presente, apontando quantos conceitos criamos para “medir” o tempo. Outros temas como a individualização do ser humano, o que significa liberdade e uma contraditória perda de identidade, ruptura do homem com a natureza também são abordados.

Em um momento do filme, a cientista compara o movimento do relógio com o próprio cosmos, servindo como modelo, e aponta que o erro da humanidade foi confundir o modelo com o original, apontando uma tentativa de analisar e estudar de forma mecânica (reducionista, tendendo à simplificação) algo que essencialmente é orgânico (por natureza, complexo). Tal comparação é levada para outros aspectos, como a organização e gestão das sociedades, que também passaram a ser vistas a partir de suas partes, simplificando, porém perdendo interações (e assim, informações) importantes. Essa visão mecanicista leva a problemas severos, pois ao desintegrar um sistema em suas partes sem se preocupar com as interações e o todo, perdemos muito do como e por que ele funciona, tornando a tarefa de compreender e harmonizar com o mesmo muito mais difícil.

A cientista apresenta uma visão clara da importância de entender o problema como um todo e não somente olhando suas partes, ao comentar problemas socioambientais bastante atuais como a superpopulação, a fome nos países em desenvolvimento, a dívida externa dos países e a corrida armamentista (hoje, de forma mais silenciosa do que no passado). Aponta a necessidade de “não somente trocar uma peça quebrada do relógio”, pois logo voltaria a quebrar por não entendermos como ela interage com as demais. Assim, devemos tentar compreender e “consertar” o todo: princípios, valores, instituições etc. Ela explica sua forma de pensar como sendo um “pensamento ecológico” (complexo, integrado, requerendo diversas perspectivas) em oposição ao pensamento cartesiano. Seria uma nova forma de enxergar os problemas do mundo, encarando-os como uma crise de percepção.

Entretanto, a cientista apresenta a perspectiva das tecnologias como sendo mais causadoras de problemas do que solução. Cita como exemplo que a mesma tornou tratamentos de saúde mais caros, tornando a medicina acessível somente para os mais ricos, e que não houve grandes avanços na saúde pública como poderiam acontecer com a simples mudança de nossos hábitos alimentares. Neste ponto, discordo, uma vez que tecnologias são ferramentas criadas pelo homem, portanto só são capazes de algo mediante o significado que lhes são atribuídas pelo próprio. Além disso, a tecnologia não torna um processo mais caro, pelo contrário, geralmente torna o processo possível (seria possível uma radiografia sem equipamentos de raios-x?), mais barato (compare o custo de equipamentos e ferramentas com o valor do salário mínimo ao longo das últimas décadas e perceberá uma regular queda) e não são responsáveis por nossas decisões (por exemplo, ela comenta como poderíamos melhorar nossa saúde pública “se apenas mudássemos nossos hábitos alimentares” – perceba que se trata de uma tomada de consciência e mudança de comportamento das pessoas enquanto indivíduos e sociedades, não essencialmente um problema causado pela tecnologia). Tal perspectiva, de forma paradoxal, se torna reducionista e enviesada, mas de certa forma corrobora a importância de evitar-se o reducionismo e “perspectivas estreitas demais”.

Outra crítica possível é quanto a uma visão que culpa mais a sociedade por ações ou decisões ao alcance de nós como indivíduos. Um exemplo é quando comenta sobre uma pessoa com problema de cálculos renais que não teria tal problema se tivesse mudado sua alimentação e praticado exercícios antes, e conclui apontando que “os sistemas não encorajam a prevenção, só a intervenção”. Preciso discordar mais uma vez, pois esse exemplo é um típico caso de um problema cuja solução é de conhecimento popular e, muitas vezes, como indivíduos, ignoramos a solução e as consequências – podemos culpar realmente o sistema quando temos todas as informações necessárias e, mesmo assim, optamos por tomar decisões erradas?

Em contrapartida, é fácil perceber várias situações em que grandes sistemas (financeiros, políticos, de extrativismo etc.) podem intervir para que não tenhamos acesso a certas informações, dificultando assim a tomada de decisões de forma realmente consciente. Portanto, não é algo de todo inválido, porém mais uma vez aponto que não podemos ter uma visão reducionista e encarar como que o culpado é um só.

O político apresenta uma perspectiva preocupada quanto ao impacto econômico e social que pode causar ao tentar atacar vários problemas ao mesmo tempo, apontando inclusive possíveis crises para setores e famílias que vivem do mesmo. Reforça a ideia de que não é um problema fácil de resolver, complexo quanto às interações e possíveis consequências, mas não anula a necessidade de buscarmos soluções.

Na sequência, algumas concepções comuns equivocadas são desfeitas, como quanto à composição dos átomos, e estes podem ser momentos bem interessantes e disruptivos para quem assiste. Tais descobertas levaram o homem a contestar os conhecimentos de sua época e perceber o pouco que sabiam sobre a natureza. Tal discussão, sobre a composição da matéria em nível subatômico leva à constatação de que, de alguma forma, todos estamos conectados (há troca de matéria e energia constante), enfatizado na frase: “No fim das contas, gostemos ou não, somos todos parte de uma teia inseparável de relações”.

Após essas constatações, volta-se para o tema das crises, apontando agora como o frágil/equivocado conhecimento humano levou a grandes erros e catástrofes, como a bomba atômica e seu uso em Hiroshima. A cientista aponta como a explosão daquela bomba transformou o mundo e podemos aqui fazer uma reflexão, lembrando da intensificação da corrida armamentista no mundo todo, o medo das armas nucleares e nações investindo grandes somas em pesquisas por aquilo cuja única finalidade poderia ser a destruição, isso sem falar no impacto ambiental devastador nas áreas atingidas: uma crise não somente ambiental e social, mas também existencial para a humanidade nascia ali – e nunca mais poderia ser cessada.

O político complementa apontando que a culpa por uma catástrofe não é somente de quem criou, mas também de quem decidiu, descrevendo mais uma vez o emaranhado de relações, de causas e efeitos, que culminam como um incidente como tendo uma natureza mais complexa do que aquela percebida por nós. A cientista retruca quanto à sua parcela de culpa, que o cientista não pode se eximir de sua responsabilidade apenas porque outros acreditam no que ele faz, uma crença muitas vezes sem conhecer as suas consequências, dando origem a um cientificismo. “O cientificismo é a crença irracional na verdade da ciência”. O filme aborda assim a questão da ética na pesquisa – e a falta de seu ensino nas universidades e discussão no ambiente de trabalho.

Ironicamente, o filme aponta também as crises pessoais vivenciadas pelos três personagens, trazendo-nos de volta para a esfera das relações sociais e como o (des)equilíbrio destas, assim como tantas outras situações apresentadas no filme, pode ser complexo.

A cientista aponta uma nova forma de ver e estudar as coisas: a teoria dos sistemas vivos, na qual o foco é na organização dos seres vivos, seus sistemas sociais e ecossistemas bem como em suas relações, visando a compreensão de forma integral.

Aborda também a questão do crescimento consumista desenfreado, suas consequências para o planeta e a necessidade de pará-lo. Podemos fazer aqui um paralelo com a ideia de sustentabilidade e decrescimento, isto é, repensar o crescimento econômico hoje, não para interrompê-lo, mas para focar no que realmente importa e faz sentido para todos.

Por fim, o poeta demonstra-se insatisfeito quanto a como o ser humano é representado, tanto na visão do político que o “enxerga” como um relógio (capaz de ser estudado em suas partes), quanto na visão da cientista como sendo um sistema (subsistema de um sistema ainda maior, o ecossistema) – para ele, cada ser humano tem que ser mais do que isso, apontando suas qualidades, defeitos e paixões: neste ponto, a ideia de sistema vivo transcende a mera ideia de um organismo que se relaciona com outros e passa para a esfera antropossocial e das ideias, corroborando ainda mais com a ideia de complexidade do ser humano: somos natureza, mas não meramente biológica. E assim ele questiona: qual o nosso lugar nisso tudo?

Bem, não haveria melhor forma de encerrar este texto do que convidando para a reflexão: qual o nosso lugar nisso tudo?